Os (In)tocáveis - uma reflexão sobre a prerrogativa de foro na seara da investigação criminal. Dos 39 processos criminais contra magistrados alcançados pelas operações desencadeadas pelo Departamento de Polícia Federal, 31 foram denunciados, 7 julgados e apenas 2 condenados, estando somente um preso e ainda assim, em prisão domiciliar.
Por Moacir Martini de Araújo in Revista artigo 5º - 23ª edição
A investigação, do latim investigatio, espanhol investigatición e inglês investigation significa “ação livre
sobre o rastro”.
Trata-se de uma pesquisa como outra
qualquer, sendo que, na ocorrência do crime, esta pesquisa será dotada do
adjetivo “criminal”, cuja busca reside em descobrir basicamente se houve crime.
Em caso positivo: Onde? Quando? Como fora praticado? E quem foi o autor?
No Brasil a investigação criminal é
produzida, em regra, por meio do inquérito policial (Código de Processo Penal,
artigos 4º usque 23) e do termo circunstanciado
no caso de infração de menor potencial ofensivo em que a autoria é conhecida e
em hipóteses flagranciais (Lei nº 9.099/95, artigo 69). Caso não haja flagrante
e consequentemente a autoria seja questionada, ainda que se trate de infração
de menor potencial ofensivo, será necessária a instauração de inquérito
policial.
Além destes dois instrumentos mais
usuais, em situações em que há noticia de infração penal, porém não existe
sequer indício de sua existência, a polícia repressiva faz uso da verificação
preliminar de informações (Código de Processo Penal, artigo 5º, §3º).
Como dissemos esta é a regra, todavia,
existem exceções nas quais a investigação ficará a cargo de autoridades não
policiais, são os chamados inquéritos
extrapoliciais.
Nos persecutórios desta natureza,
apenas a Comissão Parlamentar de Inquérito possui atribuições na esfera
criminal (Constituição Federal, artigo 58, §3º), cabendo as demais a análise de
âmbito administrativo, civil e político.
Além das CPIs existem também os
inquéritos extrapoliciais que tramitam perante a Procuradoria Geral, na
hipótese do investigado ser representante do Ministério Público, e na Câmara
Especial do respectivo Tribunal, na hipótese do investigado ser magistrado.
Dispõe o parágrafo único do artigo 18
da Lei Complementar nº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União):
“Quando, no curso de investigação, houver indício da prática de infração
penal por membro do Ministério Público da União, a autoridade policial, civil
ou militar, remeterá imediatamente os autos ao Procurador-Geral da República,
que designará membro do Ministério Público para prosseguimento da apuração do
fato”.
No mesmo sentido a Lei Complementar
nº 35/79, artigo 33, parágrafo único reza (Lei Orgânica da Magistratura):
“Parágrafo único - Quando, no curso de investigação,
houver indício da prática de crime por parte do magistrado, a autoridade
policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou órgão
especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação”.
Tais normas afrontam sobremaneira o
nosso sistema constitucional eis que pautado na teoria da separação dos poderes,
também denominado tripartição dos poderes do Estado.
Como é cediço, esta teoria foi
desenvolvida pelo cientista político e filósofo Montesquieu em sua obra O
Espírito das Leis (1748) que buscava descentralizar os poderes do Estado e
minimizar o poder de um único feixe sobre os administrados.
Antes mesmo de Montesquieu, a idéia
de divisão de esferas de poder em um Estado já eram refletidas por pensadores
como John Locke e Aristóteles em sua obra “Política”.
Em seu livro, Montesquieu distribui a
autoridade do Estado por meio de três poderes: o Legislativo que seria o
responsável pela elaboração das leis; o Judiciário cuja função é a de fazer o
Estado respeitar suas leis e o Executivo cuja função é a administração do
Estado.
Na reflexão produzida por Montesquieu
fica evidente que desde o início dos tempos o homem tem consciência que o poder
em excesso corrompe, razão pela qual ele não deve ser centralizado.
Por outro lado, para um funcionamento
harmonioso de rigor que os poderes se fiscalizem a fim de garantir o objetivo
fundamental do Estado que é o bem comum. Daí o advento do chamado “sistema de
Freios e contrapesos”, mais conhecido como checks
and balances, onde um poder controla o outro, com harmonia e independência
entre eles. Conforme cita o autor na referida obra: “só o poder freia o poder”.
Nossa Constituição Cidadã foi
lapidada segundo os ideais de Montesquieu. Tanto isto é verdade que o artigo 2º
da Carta Magna trata da independência e harmonia entre os poderes da União.
Justamente em razão disso e também
pelo fato de nossa Lei Maior ter como um de seus objetos a construção de uma
sociedade justa (CF, artigo 3º, I) resta cristalino que o dispositivo legal da
LOMP supracitado é inconstitucional e o da LOMAN não foi recepcionado pela
Constituição Federal[1].
Ainda que se diga que a própria
Constituição Federal abraçou a idéia de foro por prerrogativa de função para o
fim de proteger o agente público na condução de suas atividades com liberdade e
independência, faz-se necessário consignar que estamos falando de investigação
criminal, ou seja, da primeira etapa da persecução criminal.
Supondo-se que existisse um
verdadeiro “complô” contra o magistrado ou promotor/procurador na fase judicial,
esse seria facilmente desvendado na fase judicial, aí sim respeitando o foro
privilegiado.
Tais regalias em uma fase tão
prematura da persecução criminal tem causado a subleva da população uma vez que
aparenta estarmos em um Estado que age bruscamente contra os menos favorecidos
e com todas as regalias para aqueles que exercem determinados cargos públicos.
Sem contar que os órgãos não
policiais não contam com o aparato logístico e funcional para o exercício da
atividade atípica de investigar um “colega”, o que favorece ainda mais a
impunidade.
Necessário observarmos que nossos argumentos
técnicos baseiam-se em dados recentes haja vista que de 39 processos criminais
contra magistrados alcançados pelas operações desencadeadas pelo Departamento
de Polícia Federal, 31 foram denunciados, 7 julgados e apenas 2 condenados,
estando somente um preso e ainda assim, em prisão domiciliar![2]
Outra incongruência que verificamos
no tocante as investigações criminais aos entes supracitados é o fato de que o
ato de investigar é inerente a todos os setores da administração pública eis
que, como já dissemos, além da criminal existem outras esferas de investigação
tal como a administrativa, política, etc.. O INSS, o COAF, a SRF investigam
administrativamente e caso verifiquem que o ilícito administrativo também
constitui infração penal comunicam os órgãos com competência[3]
para tanto.
Pois bem, da mesma forma que os
órgãos suso mencionados, temos os Conselhos Nacionais da Magistratura e do
Ministério Público cuja função principal é a de fiscalizar (investigar) a ação
administrativa, financeira e funcional, respectivamente, do Poder Judiciário e
do Ministério Público (Constituição Federal, artigo 103-B, §4º e 103-A, §2º).
Nada impede que a conduta de um
desses agentes políticos constitua um ilícito administrativo, além de criminal,
razão pela qual o CNJ ou CNMP informará a autoridade “competente” para
investigar.
A atuação dos conselhos serve para
amenizar o cristalino confronto que os dispositivos orgânicos supra referidos trazem
para o texto constitucional, pois em números atuais das 29 corregedorias de
Tribunais de Justiça do país, 18 respondem ou responderam a processos no CNJ,
sendo que o órgão tem processos em tramitação ou processos arquivados contra 15
dos 27 presidentes de TJs[4].
Entretanto, em que pese os argumentos
técnicos transcritos, é pacífico na jurisprudência, e não poderia deixar de
ser, que tanto a LOMP quanto a LOMAN foram recepcionadas pela Lei Maior e
quanto aos Conselhos, mais precisamente o CNJ este teve seus poderes reduzidos
pelo STF face a ADI 4.638 proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros
- AMB, por decisão liminar, cujos fundamentos contrariam inclusive o que já
entendeu a própria Corte em casos análogos nos quais se questionava a legitimidade
do Ministério Público[5]
para investigar.
Em razão de tudo isso, a sensação de
impunidade por parte da população só cresce e medidas devem ser tomadas.
Adrede a isso, a reforma política
deve sair do papel e abolir além das normas orgânicas retromencionadas, o
próprio foro privilegiado, eis que os tempos são outros, diferentes daqueles
quando do advento de nossa Magna Carta. Convém, por fim, destacar que nossos
tribunais estão assoberbados de recursos e não conseguem dar à sociedade,
dentro de um prazo razoável, uma resposta efetiva àqueles que se valem de seus
privilégios processuais e imunidades para esquivar-se da aplicação da lei, o
que juntos produzem uma única palavra: IMPUNIDADE!
[1] Quando
uma norma contraria a Constituição Federal diz-se inconstitucional se e somente
se a sua existência é posterior a norma constitucional, caso contrário o termo
correto é “não recepcionada”.
[2] In
Prisma – Revista da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal –
Edição Nacional – Ano XXIII – nº 68 – jul/ago/set de 2011, p. 6.
[3] Aqui
utilizamos este termo no sentido de “habilidade técnica”.
[4] In
Prisma – Revista da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal –
Edição Nacional – Ano XXIII – nº 68 – jul/ago/set de 2011, p. 6.
[5] In. http://oglobo.globo.com/pais/amb-chama-de-estardalhaco-repercussao-sobre-cnj-3480787.
Acesso em 09/01/2012.