Por Moacir Martini de Araújo
Portaria interministerial nº 4.226/10 e o velho ditado: "Falar é fácil, fazer é o difícil". Um comando em defesa dos direitos humanos que expõe os policiais que estão arriscando as suas vidas e ainda tem de ficar inseguros, pois não sabem como agir diante das novas diretrizes, ou melhor, até sabem, mas com certeza enfrentarão problemas.
Desde o início deste ano, está vigente entre os órgãos de execução dos serviços de segurança pública afetos ao Ministério da Justiça, a Portaria Interministerial supracitada, datada de 31 de dezembro de 2012, que estabelece diretrizes sobre o uso da força na atividade policial e/ou penitenciária.
Tal ato administrativo está escorado em diversos atos normativos de direito internacional, devidamente retificados pelo Brasil, visando preservar os direitos humanos fundamentais do cidadão, tais como: o Código de Conduta para Funcionários responsáveis pela Aplicação da Lei, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, por meio da resolução nº 349/169 de 17 de dezembro de 1979; os princípios orientadores para a aplicação efetiva do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas na sua Resolução nº 1989/61, de 24 de maio de 1989; os princípios básicos sobre o uso da força e arma de fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei, adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para Prevenção do Crime; o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1999; e a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em sua XL Sessão, realizada em Nova York em 10 de dezembro de 1991.
Portanto, em uma breve análise estrutural, vemos que formalmente a resolução em análise atende a todas as premissas de um ato administrativo legítimo!
No que tange ao seu conteúdo material, a presente portaria visa ao estabelecimento de diretrizes para o uso da força, seja esse uso letal ou não letal (também denominado menos letal).
Grande parte do efetivo operacional dos departamentos atingidos com o presente ato de plano criticou severamente as medidas adotadas pela portaria, fundamentando, basicamente, que a mesma "engessaria" o trabalho policial, pois impedia o uso da força.Isto não é verdade! Senão vejamos:
Basicamente, a não tão novel portaria dispõe em seu anexo I, item 3 que "os agentes de segurança pública não deverão disparar armas de fogo contra pessoas, salvo em caso de legítima defesa própria ou de terceiro contra perigo iminente de morte ou lesão grave".
Também, estabelece, que "não é legítimo o uso de armas de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que, mesmo na posse de algum tipo de arma, não represente risco imediato de morte ou de lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros" (anexo I, item 4).
Mais adiante, estabelece a mesma vedação para o fim de atingir motorista de veículo que tenha desrespeitado o bloqueio policial em via pública, a não ser que haja o perigo atual ou iminente de agressão para os policiais ou terceiros (item 5).
Até aqui, não vemos novidade alguma! Esses itens objetivam apenas concretizar a regra disposta no artigo 25 do Código Penal, visando facilitar a interpretação por parte dos servidores sem formação jurídica.
O artigo em comento trata da legítima defesa, cujo reconhecimento implica na exclusão da ilicitude do fato típico, o que, por conseguinte, exclui o crime. Dispõe esse dispositivos, in verbis: "Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Assim sendo, verificamos que o uso da força não pode mais ser considerado como regra e, por consequência, o alegado "estrito cumprimento de um dever legal". Mister se faz que sejam identificados os requisitos da legítima defesa para aí sim o servidor usar da energia necessária e proporcional para fazer cessar a agressão que lhe foi irrogada.
Nesse diapasão, a presente portaria também declara como ilegítimos os chamados "disparos de advertência" e o ato de apontar arma de fogo contra pessoas durante os procedimentos de abordagem (anexo I, itens 6 e 7).
Contudo, o legislador a partir desses itens nos remete ao item 2 da portaria que deixa bem claro que, sempre que houver a necessidade do uso da força, caberá ao servidor atentar-se aos princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência. Quanto à abordagem policial, o próprio item 7, de forma bem objetiva, dispõe que tal prática não poderá ser rotineira e indiscriminada, o que por si só já repete a questão da moderação anteriormente referida.
A portaria, na verdade, tem o escopo de que sejam evitados verdadeiros excessos que muitas vezes são fruto de mau treinamento por parte dos policiais, como o uso da arma de fogo como tonfa ou disparos em veículos que ultrapassaram a barreira policial, sem representar qualquer risco à integridade física ou à vida dos policiais ou de terceiros.
Tudo na vida exige bom senso e a atividade policial também não é exceção para isso. Suponhamos que a polícia tenha de efetuar uma diligência em um lugar em que está sendo realizado um baile funk, obviamente que, dependendo da situação, poderá o policial efetuar um disparo de advertência, porém, sem colocar em risco qualquer pessoa, em razão do imenso barulho, pois os policiais não serão ouvidos.
Portanto, ao contrário da grande parte da massa afeta, entendemos que a presente portaria é legítima e legal, materialmente falando.
Entretanto, como tudo no sistema normativo brasileiro, nossos legisladores, em sentido amplo, criam leis, estabelecem diretrizes, porém, não as tornam efetivas, exequíveis, o que acaba sendo pior do que se não as tivessem criado. Tal conduta, por parte dos órgãos políticos, nos dá margem para pensarmos que agem dessa maneira não para resolver as questões afetas ao bem comum da população, mas sim, para apenas transparecer aos organismos internacionais que o Brasil está implementando as políticas públicas a que se obriga externamente!.
Estamos dos referindo mais especificamente aos itens 8, 14 e 15, do anexo I do referido ato administrativo.
Em síntese, o primeiro item mencionado dispõe que todo agente de segurança pública deverá portar no mínimo dois instrumentos de menor potencial ofensivo e equipamentos de proteção, independentemente do porte ou não de arma de fogo.
Além da regulamentação do uso e consequência do uso de tais aparatos não letais (itens 9 a 13) a partir do item 14, todos do anexo I, a portaria em questão trata do treinamento que deverá ser dispensado aos policiais, durante o horário de sua jornada de trabalho (não poderá ser em dia de folga).
O artigo 2º, §1º da portaria m comento, estabelece o prazo de 90 dias a contar da publicação do presente ato para a adequação dos procedimentos operacionais, seu processo de formação e treinamento aos servidores envolvidos, sendo que, caberá, ainda, à Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça levar tal necessidade em voga para o repasse dos recursos necessários aos entes federados.
Ocorre que, até o presente momento, nada foi implementado nos órgãos referidos na presente portaria!
Importante destacar que, no tocante ao Departamento de Polícia Federal, houve a distribuição apenas de spray de pimenta, um tipo composto químico que irrita os olhos, causa lacrimejar, dor e até mesmo cegueira temporária. Sequer já fora escolhido o segundo instrumento não letal a ser utilizado!
Quanto ao treinamento, mister se faz consignar que, a Instrução Normativa nº 01/2007, que regulamenta os horários de atividade física do policial federal e qualquer outro ato análogo ligado aos demais órgãos envolvidos, não supre a lacuna deixada pela portaria, pois atividade física é consensualmente definida como todo e qualquer movimento corporal produzido pela contração músculo-esquelética, resultando num gasto energético, o que difere muito de um treinamento de armamento e tiro.
Entendemos que tal portaria interministerial está fadada ao insucesso, posto que, antes de sua existência, tímidas medidas foram adotadas para a capacitação e treinamento dos servidores com arma de fogo, o que dirá das novas recomendações.
Já passou da hora para que as autoridades públicas entendam que o bem ambiental, segurança pública necessita implementação efetiva de políticas públicas e que apenas positivar normas sem efetivá-las e torná-las exequíveis (pela falta de recursos, geralmente), somente aumenta a sensação de impunidade e indignação por parte de todos os cidadãos em relação aos poderes constituídos como um todo (Estado e polícia).
Por outro lado, tal prática expõe os policiais que estão arriscando as suas vidas e ainda têm de ficar inseguros, pois não sabem como agir diante das novas diretrizes, ou melhor, até sabem, mas certamente sofrerão problemas interna corporis para justificar o não acatamento a uma portaria que até o presente momento é inexequível no tocante aos itens supramencionados. Caberá ao então injustiçado policial apenas a reflexão sobre o ditado: "É fácil falar, o difícil é fazer diante do caso concreto!".
Artigo publicado na Revista Artigo 5º, edição 21, páginas 49/50.